O hoje e o tempo: por mais ficcionistas no mundo

Joana Brentano e Renato Mendes Oliveira

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“Os nomes são loucos,
são verdadeiros.” (Herberto Helder em
Poemacto)

Houve um tempo em que ao tempo demos um nome.

De oferta a esse deus, um som antigo firmando a nova percepção. Ao pinçar, do todo, um mesmo aspecto de duração, fim e início, a palavra agiu como uma ampliadora do nosso tamanho. Fundávamos um novo mundo para nós, e não seria muito dizer que, com ela, começávamos a nossa história da transformação.

Ou da conservação, já que no corpo concreto do tempo, onde efetivamente experimentamos a existência, não é difícil nos percebermos estancados entre os limites do que acreditamos possível, evitando as espinhentas margens que diariamente inventamos em nós.

Somos presas fáceis do arranjo específico de ficções que nos cerca, que nos compõe. Sob o peso do que aparentemente já é, vivemos o hoje como se fosse o fóssil de si mesmo – seu som feito apenas memória do próprio eco.

Pela janela buscamos: a concertina? ou o ar?

Por outros modo de ser é que dizemos: nos urge pôr este hoje para delirar, fazer de seu corpo correnteza sedenta de pontes e fendas por onde possamos retomar o que temos de mais valioso: a possibilidade de dotar de sentido o viver. Para assim entendê-lo mais fresco, vívido, nosso.

Essa disposição fabuladora é o que nos falta. Faltam ficcionistas ao mundo.

Construir imaginários

“A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade;
é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade.” (Gaston Bachelard em
A água e os sonhos)

Trabalho do sensível, o ofício de um ficcionista é olhar para a matéria das coisas até ver outras, até ver muitas e senti-las percorrendo as mãos, o corpo, compondo novas histórias até reencantar as palavras que constituem nosso mundo.

Seja literário, audiovisual, plástico, performático ou em nossos modos cotidianos de ser e relacionar, o exercício da ficção, ou fabulação, brinca com os limites dos territórios narrativos a que chamamos imaginário. Ao fazer isso, abre uma interface para um conjunto único de significações, sobre as quais outros indivíduos vão reconstruir seus próprios olhares e, concatenando-os com outras plataformas de percepção, oferecidas por outras pessoas, criar novos arranjos de sentido, a serem oferecidos de volta ao coletivo. E a nós.

Criar campos de fabulação também para que o outro se permita fabular.

Ao ampliarmos as superfícies de contato entre realidades subjetivas diversas, num intercâmbio interessado de metáforas e outras maneiras profundas de conceber a realidade, podemos aumentar a permeabilidade do coletivo às sensibilidades que o compõem, criando um mundo capaz de imaginar o outro de si mesmo. E que conheça o outro o suficiente para dar-se a conhecer por ele.

Afinal, se outros hojes são possíveis, eles só podem ser criados pela ação concreta de ser, de se deixar ser e de se oferecer à percepção do outro, para que ele saiba que ser assim é possível. Mais: para que saiba possível ser de outras formas, como as puder criar, como as quiser experimentar, com a “contribuição milionária de todos os erros”.

A serviço do tempo

uma fenda é o espaço
as mãos entreabertas
para criar a noite
sem forma

Em cada um de nós, fundar novos hojes é também criar novos jeitos de dizer nosso nome, dar a ele tonalidades flutuantes, abertas à luminosidade das horas e à construção consciente do olhar. É fundar novos jeitos de enxergar o passado e as relações. É imaginar novos espaços de ação para, a partir deles, imaginar ainda outros e outros, e assim ver o que o tempo nos ajudará a erigir.

Como fabuladores, resgatamos do tempo o nome do porvir. Soltamos as rédeas com que o tentamos adestrar e nos colocamos de mãos dadas com ele, para que, através de nós, ele construa novas histórias (nossas) de transformação.

Trabalhando juntos neste hoje finalmente aberto, vamos olhar para trás e pensar, estender as mãos às palavras, pensar, ouvir o som oco das palavras, ouvir seu som cheio, revelar o que se guarda escondido, trocar mil vezes de máscara, testar no rosto mil marcas, ver sua cor contra a luz, buscar a sombra, trocar a luz. Vamos plantar e regar as criações uns dos outros. Emaranhar os espinhos. Enfileirar um a um. E festejar quando for a hora da brotação.

“Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” (Herberto Helder em Poemacto [de novo])

Foice ao fóssil: o convite

Cientes da face maleável do mundo, que formas improváveis a realidade poderá assumir se começarmos a lhe ofertar novas ficções? Que delírios poderão tomar nossos nomes? E que sentidos ganharemos nós, individualmente?

Falta gente cavoucando a realidade: martelo, sonho e pesadelo nas mãos. Pelo ofício da palavra, pelo exercício de existir e de pensar a existência, acreditamos na germinação de pequenas e grandes criações e na possibilidade de reencantar os modos de ver o mundo, deslocando suas formas, dançando no ar entre as concertinas, ofertando para a vida a possibilidade de transformá-la.

“É preciso recriar o criar”. Eis o nosso convite a você.

“Semeei as sementes que eram nossas e as que não eram nossas. Transformei as nossas
mentes em roças e joguei uma cuia de sementes.” (Nêgo Bispo em a terra dá, a terra quer)